A culinária chinesa é uma das mais apreciadas do mundo, tanto em seus pratos mais simples como nos mais elaborados. No entanto, o que poucas pessoas sabem é que ela se fundamenta na medicina tradicional chinesa (MTC) e mantém, desde tempos remotos, um enorme poder terapêutico. Isso fez com que fosse adotada a terminologia “Terapia alimentar” ou “Dietoterapia” para designar o direcionamento nutricional para prevenção, controle e cura de doenças.
A dietoterapia chinesa (DC) difere muito, em seus fundamentos técnicos, daquela preconizada por nutrólogos ou nutricionistas com formação ocidental. Por isso, sua aplicação exige formação específica na área.
De acordo com a dietoterapia chinesa (DC), entre as características mais importantes daquilo que comemos estão o sabor e a energia, que manterão o equilíbrio do ser humano. O sabor diz respeito à propriocepção gustativa que está presente em cada alimento, e é dividido em cinco categorias: amargo, azedo, picante, doce e salgado.
Já o conceito de energia não é o mesmo adotado no Ocidente. Por aqui, o termo diz respeito à energia produzida pelo corpo e proveniente da ingestão de carboidratos, proteínas e gorduras totais. Encontramos esse valor com facilidade nos rótulos de muitos produtos, expresso na forma de quilocalorias (kcal) ou quilojoules (kJ). No Oriente, porém, o conceito de energia é mais abstrato e não pode ser contabilizado. Segundo as bases teóricas da MTC, tudo aquilo que ingerimos é dotado de uma energia vital denominada qi, e que também alterará a energia do ser que a ingere. Uma forma de categorizar o qi de cada alimento se dá por meio de um dos pilares da MTC: a teoria do yin e yang. Enquanto os alimentos de característica energética yin refrescam e tranquilizam (exemplos: melão, banana, pepino, hortelã), os de característica energética yang aquecem e aceleram (exemplos: pimenta, gengibre, noz-moscada, canela).
Os pratos compostos por alimentos medicinais chineses seguem receitas tradicionais e técnicas baseadas na maneira como o corpo humano opera cada um deles, com a finalidade de manter a saúde, afastar ao máximo as doenças ou minimizá-las quando já instaladas. Assim, conforme demonstrado na tabela da página 77, há uma afinidade entre cada sabor e um órgão, o que promove maior compreensão sobre as doenças e como tratá-las.
O primeiro trabalho de dietoterapia chinesa data da dinastia Han (206 a.C. – 220 d.C.) e é intitulado 黄帝内经 Huángdì nèijīng (Clássico de medicina interna do Imperador Amarelo). Nele encontram-se informações sobre a utilização dos alimentos recomendados para uma pessoa tendo em vista sua condição de saúde, além de particularidades ambientais e climáticas.
Livros médicos chineses (antigos e modernos) explicam a ação de centenas de plantas, animais e minerais sobre o corpo humano e a potencialização dessa terapia quando aliada às demais técnicas da MTC (como moxabustão e acupuntura).
Algumas premissas antigas continuam sendo fortemente defendidas pelos terapeutas: (1) um alimento que é bom para uma pessoa não necessariamente será bom para outra; (2) o que é bom para uma pessoa num determinado momento de sua vida não será bom para essa mesma pessoa sempre; (3) quanto mais diversificada for a alimentação de uma pessoa, explorando-se ao máximo os sabores e a energia, mais informações terapêuticas estaremos dando ao corpo que a recebe, de modo a beneficiar a maior quantidade possível de órgãos. Tais princípios, sendo respeitados e somados à alquimia culinária, certamente serão um “remédio” efetivo e prazeroso.
Para que a DC tenha o efeito desejado, não basta comer os alimentos recomendados uma única vez e acreditar que o corpo os perceberá com finalidade terapêutica. São necessários consumo continuado e paciência para que o corpo entenda que o alimento está sendo ingerido para modificar padrões de desarmonia e melhorar a energia e o funcionamento dos órgãos do paciente.
Muitas vezes o equilíbrio do organismo é quebrado pelo clima ou por uma lesão física. Os alimentos terapêuticos serão fundamentais para garantir a retomada da saúde. Por exemplo, num dia com baixas temperaturas, é comum que haja uma diminuição do qi pelo corpo ou um aumento do yin. Assim, recomenda-se a utilização de alimentos que regulem essa desarmonia aumentando o qi e diminuindo o yin ou elevando o yang. Da mesma forma, em dias de elevada temperatura ambiental, há aumento do yang, e se deve apostar no consumo de alimentos de característica yin para retomar a homeostase (equilíbrio corporal).
Quando pensamos em DC, muitas vezes não estamos trabalhando apenas com alimentos propriamente ditos, mas também com ervas e temperos que irão compor um prato. Esse procedimento, por ser tão rico e efetivo, não é empregado apenas na China, mas em muitas outras culturas e escolas médicas naturalistas. Um tempero é capaz de realçar o sabor de um alimento e potencializar seus benefícios.
Uma refeição tradicional chinesa, seja das mais simples, encontradas numa casa de camponeses, seja mais sofisticada, encontrada num restaurante conceituado, prioriza o princípio de sincronizar todos os sabores e energias que, reunidos, propiciarão a cura.
Ao pensar na finalidade terapêutica dos alimentos segundo a MTC, não priorizamos somente o que comemos, mas como comemos. Você verá pessoas que se alimentam aparentemente bem, mas apresentam hábitos nocivos que anularão os benefícios dos alimentos ingeridos. Lembre-se, portanto, de comer em lugar calmo, com mastigação lenta (a expressão equivalente a “bom apetite” na China é 慢用 mànyòng “coma lentamente”), evitar distrações e usar a mente e os sentidos ao se alimentar (preste atenção aos aromas, texturas e sabores).
Um aspecto importante e defendido pela DC é que determinado alimento é obtido na natureza em determinada época do ano. A natureza sabe o porquê de ele ser oferecido nesse ou naquele momento. Então, aproveite a sazonalidade.
Veja alguns exemplos da culinária chinesa conforme as estações do ano. Experimente replicar estes pratos de preparo simples, adaptando aos alimentos que encontrar em sua região.
Aspargos e cenoura com vinagre na primavera
Na primavera, as coisas ganham vida e começam a crescer. É importante que os
seres tenham mais do que o habitual para o crescimento. O fígado e a vesícula biliar estão especialmente em evidência. Deve-se comer as verduras que brotam nesta época, pois fornecem o yang necessário e ajudam a nutrir o fígado. Vale também diminuir a ingestão de carnes gordurosas e beber sucos verdes frescos, que estimulam a produção e circulação do qi.
Como fazer: lave uma porção de aspargos e uma cenoura em água corrente. Corte os vegetais e leve-os ao fogo com um fio de óleo. Deixe que eles fiquem ligeiramente crus (“al dente”). Prepare uma mistura de duas partes de azeite virgem para uma parte de vinagre de ameixa ou vinagre de maçã. Despeje o molho nos vegetais com o fogo desligado. Aproveite o prato com uma limonada (água e limão espremido, sem açúcar).
Salada de tomate com pepino no verão
Nesta época do ano o yang está naturalmente alto, e você precisa esfriar um pouco o corpo. O tomate e o pepino são vegetais com características yin, que podem ser consumidos com essa finalidade.
Como fazer: tente encontrar ingredientes frescos e maduros. Lave-os bem e corte os tomates (com pele e sementes) e o pepino (com a casca). Acrescente uma cebola picadinha (dê preferência à cebola roxa). Misture os ingredientes com azeite extra virgem e adicione um pouco de dill (endro), sal e pimenta a gosto.
Sopa de abóbora-manteiga no outono
Segundo a MTC, no outono o qi vai para dentro do núcleo do corpo. Comer as hortaliças e frutas que estão disponíveis nestes tempos ajuda seu corpo na transição para o inverno.
Como fazer: pegue uma abóbora-manteiga descascada e leve ao fogo com um pouco de água. Quando ela estiver quase cozida, acrescente os seguintes ingredientes bem picados: uma cebola média, dois dentes de alho, um talo de aipo e
uma cenoura grande. Tempere com um pouco de sal, pimenta, canela em pó e noz-moscada e, em seguida, adicione uma xícara de carne de frango (já cozida). Quando o caldo secar um pouco e o sabor de todos os ingredientes for incorporado, desligue o fogo e deixe esfriar. Bata a sopa no liquidificador e devolva ao fogo, conferindo se o sal está de seu agrado. Se necessário, acrescente um pouco mais de água.
Sopa de frango com gengibre no inverno
Os chineses apreciam caldos quentes, independentemente da estação do ano. No inverno, porém, é comum acrescentarem ingredientes capazes de aquecer o corpo (dispersando o frio e evitando o colapso de yang). O gengibre cumpre muito bem esse papel, além de atuar nos meridianos do baço, estômago, coração e pulmão, eliminar a umidade, propiciar a circulação do qi e do sangue e favorecer a atividade de desintoxicação do fígado.
Como fazer: separe porções de frango (pode misturar partes mais e menos gordurosas como peito, coxinha da asa e sobrecoxa) e faça uma marinada com alho, pimenta, gengibre, vinagre de arroz, molho de soja e um pouquinho de sal.
Sele as carnes com um pouco de óleo de soja.
Na mesma panela, acrescente cebola e alguns dentes de alho e frite por alguns segundos. Junte batatas e nabo cortados em pequenos pedaços e água fervendo. Quando o frango e os tubérculos estiverem cozidos, adicione cogumelos ou legumes de sua preferência, como abobrinha e bok choy (repolho chinês). Finalize com ervas frescas como coentro e salsinha. Prove a sopa e acerte o sal e A pimenta.