quinta-feira, maio 19

COMO A PSICANÁLISE CONTRIBUE PARA A NEUROCIÊNCIA?

A psicanálise inaugurou um modo peculiar de pensar o humano e produzir a experiência clínica. Os psicanalistas pós-freudianos continuaram a invenção psicanalítica nos rastros do inconsciente e do desvelar da subjetividade. O avanço das neurociências apresenta questões à psicanálise. Em função do pragmatismo, a fecundidade do ofício da psicanálise com a linguagem estaria entre a vida e a morte na atualidade? 

Barreto (2013, p. 11) questiona:

Quem é o ser humano contemporâneo? É alguém que se constitui de modo singular? Como a psicanálise pode contribuir para sua compreensão? [...] A psicanálise pode desabar em desvalia por causa do utilitarismo em prol de uma suposta evolução científico-cultural-social-tecnicista? As explicações genéticas e da estrutura cerebral abarcam quase tudo, e há muito pouco para a psicanálise e seus questionamentos em respeito ao humano? Freud não mais explica? Como os psicanalistas entendem os laços sociais atuais? O mundo se desumanizou?

Indagações diversas estão presentes na seara do campo psicanalítico na atualidade e, mais ainda, quando se busca estabelecer conversações da psicanálise com outras áreas do conhecimento. Sobre a relação entre psicanálise e medicina, Moretto (2001, p. 61) fala de uma antinomia radical:

Podemos abordar a questão por vários ângulos, mas, para falar do encontro que se dá entre o representante da Psicanálise, o analista, e o representante da Medicina, o médico, preferimos abordá-lo do ângulo da antinomia. Há uma antinomia radical entre Psicanálise e Medicina. Para usar uma metáfora matemática, são elas como suas assíntotas, duas linhas que caminham paralelas, que tendem para o infinito, mas que nunca se cruzam.

Moretto (2001) aborda que o psicanalista tem em sua prática a referência de que o Inconsciente rege o funcionamento psíquico, os atos e as palavras das pessoas; já o médico ocupa uma posição de saber, vinculada à doença, sustentando-se na objetividade e na cientificidade em seu método. A autora problematiza a exclusão das posições subjetivas na relação médico-paciente e fala da extraterritorialidade do lugar do psicanalista. Como se reconhece, o método de trabalho – a escuta do psicanalista – é bem diferente daquele desenvolvido pelo médico.

O modelo médico vigente ainda hoje no campo da saúde tem sido muito questionado há tempo. Uma perspectiva biopsicossocial se contrapõe ao pensamento e às práticas pautadas no organicismo. De acordo com Bocchi e Manzoni-de-Almeida (2013), os debates na psiquiatria e na psicologia são costumeiramente caracterizados pela tensão entre as concepções biológicas e as psicossociais acerca da vida mental. Para os autores, nos últimos tempos, o estudo do cérebro tomou uma dimensão multidisciplinar e, a partir dos anos 1990, esforços têm sido encontrados no tocante à inclusão da abordagem da subjetividade.

Surgem, cada vez mais, cursos universitários com base em metodologias ativas e de integração do conhecimento. Tutorias, desenvolvimento de habilidades de escuta e comunicação, atividades voltadas à comunidade, entre muitos outros recursos de ensino-aprendizagem, têm se tornado presentes na formação acadêmica atual. Fala-se de humanização da formação em saúde.

Nesse sentido, as contribuições da psicanálise podem ser vitais nas mais diversas áreas do conhecimento em os vários níveis da formação profissional. Infelizmente, ainda existe quem pense de modo extremamente biologizante, reduzindo o ser humano às explicações cientificistas. È um panorama ambíguo, movediço e complexo que se percebe, desde a fragmentação do saber a tentativas de integração do que se produz em diferentes especialidades ou ramos do conhecimento.

Encontra-se quem fique nos extremos de uma biologia e uma psicanálise ortodoxas, que não se ampliam; por outro lado, há quem se proponha a pensar sobre o novo e dar espaço ao instituinte de forma contextualizada e histórica. Nessa direção, o debate sobre o humano poderia envolver muitos profissionais, assim como as noções de sujeito e subjetividade, a epistemologia e o campo teórico-técnico da psicanálise teriam muito a contribuir para outras áreas do conhecimento, como a neurologia. Nem todas essas dimensões, contudo, serão debatidas neste escrito.

Sobre as interfaces entre o campo psi, a neurologia e as neurociências, são inúmeras as possibilidades. À guisa de exemplificação, pode-se falar da neuropsicologia, especialidade da psicologia muito voltada à avaliação e à reabilitação neuropsicológicas, e da neuropsicanálise, campo interdisciplinar de áreas do conhecimento em que as neurociências interagem com a psicanálise. Pretende-se aqui considerar algumas contribuições da psicanálise à neurologia, e da neuropsicanálise, compreendendo que o trabalho psicanalítico é amplo, estendendo-se além dos modelos mais instituídos, assim como as interfaces da psicanálise com outras áreas do conhecimento, como a neurologia, podem produzir práticas, perspectivas de ensino e pesquisa bem interessantes no cenário da assistência em saúde ou em outros contextos.

Se Freud, no começo da sua vida profissional, posicionava-se como médico, o pai da psicanálise ganhou autonomia de sua ciência e profissão, fez giros epistemológicos em suas construções teórico-técnicas, localizou o analisante como sujeito do conhecimento/desconhecimento de si e priorizou a escuta sensível na invenção psicanalítica.

A psicanálise, fundada por um neurologista, instituiu um modo revolucionário de pensar o humano e produzir a práxis clínica. Houve, indubitavelmente, um distanciamento das raízes de Freud na neurologia para a criação do ofício de psicanalisar. A técnica da hipnose e, posteriormente, com a psicanálise, a da associação livre e atenção flutuante, assim como a psicopatologia histérica, estão na base da criação freudiana. A psique não se reduz à consciência – há a mente inconsciente povoada por fantasmas psíquicos – e as patologias somáticas não excluem a expressão subjetiva do humano.

Numa vertente psicanalítica, Bezerra (2003, p. 19) explica diferenciando da ideia de sintoma do corpo da medicina: “O sintoma no corpo é a marca do significante, é uma mensagem ignorada pelo próprio autor dela, a ser decifrada na fala deste autor-sujeito”.

Para Santos et al. (2004), o médico não enxerga o corpo do sofrimento erógeno da psicanálise. A medicina utiliza os aparatos sofisticados da ótica. É necessária, por outro lado, a perspectiva do ouvir.

Nesse ínterim, indaga-se aqui: tais perspectivas do conhecimento são irreconciliáveis na atualidade? O ser humano não expressa em seu sofrimento supostamente orgânico-neurológico, seu psicodinamismo, as rugas e as flores que a arquitetura de sua história ou biografia crava nas relações com o corpo, as pessoas e o mundo? Não seria necessária uma visão ampliada que articule as contribuições da psicanálise com as da neurologia, uma visão integrativa do conhecimento para a compreensão aprofundada de pessoas com cefaleias, Alzheimer, Parkinson, acidente vascular cerebral (AVC), epilepsia, entre tantos outros exemplos?

Pensar com base em múltiplas dimensões biopsicossociais nas casuísticas parece elemento fomentador de avanços. Não se pode ainda perder do debate o que tem sido dialogado nos campos da ética, bioética e espiritualidade nos modelos ampliados de compreensão do binômio saúde-doença, nas interfaces da psicanálise com a assistência em saúde.

Concepções de inconsciente, infantil, linguagem, história de desenvolvimento psicossexual, metapsicologia freudiana, compulsão à repetição e contribuições sobre compreensão da personalidade, psicopatologia, gozo com o sintoma e escuta clínica ampliada são alguns dos ingredientes psicanalíticos teóricos e técnicos que podem dialetizar ou dinamizar o trabalho na medicina e, mais especificamente, na neurologia.

O manejo de conceitos de transferência e contratransferência pode também balizar a relação médico-paciente, facilitando o crescimento mental e reconhecendo situações de acting out dos envolvidos. De acordo com Mello Filho (2007), o psicanalista Balint, criador de fundamentos da psicologia médica, desenvolveu um trabalho que poderia ter transformado a medicina tradicional. Para Balint (2007), é objetivado examinar a relação médico-paciente, pensando no médico, em sua farmacologia, como substância. Nesse sentido, entre outros aspectos, a discussão em grupo sobre a vivência com pacientes, os casos clínicos, é sublinhada.

Indaga-se neste momento: como seria a medicina se os médicos enxergassem a si próprios, em suas potencialidades singulares, como os principais remédios, com efeitos terapêuticos e colaterais, nos contatos com os pacientes?

Barreto (2011) comenta:

As ciências médicas relacionam-se, muitas vezes, com seu paciente como um cliente genérico, produzido por leis gerais e estatísticas disponíveis à consciência do médico e determinantes de seu raciocínio, dos passos que o norteiam em diagnósticos e planos terapêuticos. Entretanto, não raramente, o paciente não é percebido na Medicina em sua singularidade, no modo único de existir (p. 149).

Sabe-se do paciente a priori por meio dos livros, periódicos científicos e classificações. O paciente, dessa forma, é coisificado e desumanizado, perdendo, na visão turva da ciência, sua condição de ser ativo que edifica seu estilo de viver e suas possibilidades de recuperação [...]. Sabe-se do paciente, na lógica positivista, por meio de dados, exames e do paradigma do cliente genérico. Não por acaso, nessa mesma lógica, pode-se comunicar “em equipe”, sem um lugar de subjetividade para o paciente [...] (p. 150).

A perspectiva de Freud e da psicanálise é arrojada, o que significa não apenas inovar nos atendimentos, mas também pensar sobre a cultura e a civilização de modo psicanalítico. Sendo assim, as instituições que constituem a vida social na contemporaneidade podem passar pelo crivo da reflexão psicanalítica. Nesse raciocínio, a psicanálise e a medicina, concebidas como instituições distintas em termos de objeto, repertório teórico-metodológico e objetivos, podem criar interfaces. É nesse viés que se pensa nas contribuições da psicanálise à neurologia e/ou da neuropsicanálise.

Numa dimensão clínica, Eizirik e Hauck (2008) comentam que a psicanálise visa a uma expansão da capacidade intrapsíquica no tocante a um aumento do conhecimento acerca de si mesmo; também falam de efeitos sintomatológicos e das possibilidades de escolha das pessoas.

Freud introduziu uma série de conceitos teóricos e recomendações técnicas que serviriam de alicerce para o desenvolvimento da ciência psicanalítica, constituindo sua base até os dias de hoje. Dentre esses conceitos estão a existência do inconsciente, as resistências, a transferência, a importância dos sonhos e da livre associação [...], a instituição teórica das instâncias psíquicas (id, ego e superego), o uso de defesas contra a angústia, como a clivagem, além da instauração de recomendações técnicas imprescindíveis ao processo analítico, como o uso de interpretações e a neutralidade (EIZIRIK; HAUCK, 2008, p. 153).

Sabe-se, por outro lado, que a psicanálise se constitui como um terreno multifacetado, cuja compreensão ampla exige contemplar seus diversos autores e as inovações teórico-técnicas. Os psicanalistas pós-freudianos continuaram a invenção da psicanálise nos rastros do inconsciente, da subjetividade e, na maioria deles, das explicações mentalistas. Não se pode esquecer de contribuições de autores clássicos e dos mais contemporâneos, entre os quais há aqueles que fazem deliberadamente pontes entre psicanálise e medicina, mais especificamente, a neurologia.

Tal dimensão merece relevo, pois a psicanálise tem se produzido, ao longo dos anos, às margens do discurso médico, sobretudo o organicista, além do que se observa na atualidade uma espécie de psicologização da psicanálise. A história psicanalítica clama por revisões nas avenidas e curvas da contemporaneidade.

O avanço das neurociências delineia um dilema à psicanálise atual: isolar-se ou construir intersecções? Na segunda perspectiva, uma pergunta não cala: de que forma tal relação se estabeleceria? Não são incomuns crises conversivas que se confundam com casos de epilepsia ou, até, problemáticas neurológicas que se ampliam fenomenologicamente a partir das idiossincrasias do funcionamento psíquico. Existem lesões neurológicas em algumas pessoas, que afloram as expressões da relação entre mente e cérebro/sistema nervoso, aspecto que precisa ser mais estudado.

O assunto é complexo, pois traz à tona a interação entre áreas distintas do conhecimento num campo de saberes compartimentalizados. Fala-se da possibilidade de uma integração muito ampla somatopsíquica e social e os cursos de formação em saúde com metodologias ativas, como Problem Based Learning (PBL) ou aprendizado baseado em problemas, têm muito a contribuir para isso.

Molen e Lang (2007) enfatizam as habilidades de escuta para o profissional da medicina. Falam de silêncios, perguntas, de parafrasear conteúdos, refletir sentimento, concretizar e sumariar, entre outros aspectos.

Produzindo ideias importantes para a neurologia, durante muito tempo substimadas, e apresentando conteúdos que posteriormente desenvolve em suas teorizações psicológicas, Freud (1895), em Projeto para uma psicologia científica, busca prover uma psicologia que seja uma ciência natural, representando os processos psíquicos como estados determinados, cujos neurônios devem ser compreendidos como as partículas materiais. Destaca, na maquinaria neurônica, diferentes sistemas de neurônios, articulando noções de percepção, memória, consciência e (im)permeabilidade neuronal. Enfatiza a concepção quantitativa de modo que os neurônios são pensados tendo que lidar com as quantidades. Refere-se tanto aos estímulos externos quanto às excitações endógenas e menciona a função defensiva da mente. Aborda diversos assuntos, como a propensão do sistema nervoso de fugir da dor, as barreiras de contato, o problema da qualidade, sendo seu escrito um documento freudiano fértil para o desenvolvimento da neuropsicanálise.

Soussumi (2004) menciona que a neuropsicanálise é um método para integrar a psicanálise e a neurociência. Fala, entre outros aspectos, da investigação psicanalítica de pacientes com lesões neurológicas focais. Também explica que se enxergue se e em qual extensão a intervenção psicanalítica é capaz de contribuir para reabilitar inúmeras desordens de personalidade, motivação e emoção, associadas a dano focal neurológico, salientando a importância da conceituação psicanalítica. Destaca contribuições acerca do inconsciente e das relações de objetos. Enfatiza que o neurologista Freud criou a psicanálise, um método psicológico, mas não perdeu a esperança, contudo, de que tal área se unisse à neurologia. Ressalta que é no campo dos lesionados cerebrais em que mais se torna perceptível a articulação das duas áreas, que não corresponderia a uma correlação isomórfica entre conceitos psicanalíticos e neurocientíficos. Ainda faz referência ao fato de que em 2000, em Londres, durante a realização do I Congresso Internacional de Neuropsicanálise, foi fundada a Sociedade Internacional de Neuropsicanálise.

Lyra (2005) comenta que a psicanálise continua ampliando seu campo de trabalho. Para o método neuropsicanalítico, ressalta a importância de Mark Solms e Ramachandran. Apresenta a neuropsicanálise como um novo paradigma psicanalítico no século XXI e enfatiza o Prêmio Nobel de Medicina de Kandel, em 2000, por suas contribuições à neurobiologia e o conceito de plasticidade neural. Ainda fala, entre outros aspectos, da importância não apenas dos processos cognitivos, mas dos fenômenos emocionais, que tem sido enfatizada nas neurociências.

Há muito a ser estudado e descoberto na relação da psicanálise com a medicina. Não apenas se pensa de modo genérico sobre a relação entre mente e cérebro, psique e soma, ou acerca de fenômenos psicossomáticos (por exemplo, lesões em órgãos oriundas de etiologia psíquica), mas se indaga como uma intervenção psicanalítica pode produzir mudanças sistêmicas.

Nos circuitos e atividades neuronais?

No sistema cardiovascular?

No sistema imunológico, em suas células de defesa, e nos hormônios, o que a psiconeuroimunologia teria muito a contribuir?

Quais modalidades de intervenção psicanalítica trariam tais efeitos somáticos?

Que tipos de manejo adaptado de setting e timing favoreciam tais mobilizações somatopsíquicas?

Pensar dessa forma seria uma heresia ao purismo da técnica psicanalítica, uma psicanálise aplicada e, portanto, menor ou um tema de profunda importância para os psicanalistas contemporâneos?

Aprofundando as relações entre cérebro e mente, Solms apud Arantes-Gonçalves (2007, p. 96) evidencia sobre a neuropsicanálise:

[...] baseado no seguimento de doentes com lesões frontais ventromesiais bilaterais em psicoterapia psicanalítica, sugere que é possível observar nestes pacientes processos do inconsciente tais como a tolerância à mútua contradição, a atemporalidade, substituição da realidade externa pela realidade psíquica e mobilidade de catexia (processo primário), como se estes processos representassem um predomínio do princípio do prazer sobre o processo secundário.

Barreto (2011), por sua vez, aborda um caso de uma criança com quadro de hidrocefalia com cisto em região frontal, histórico de prematuridade, ventriculite e inúmeras neurocirurgias, que teve um desenvolvimento muito positivo, salientando a importância da maternagem na medicina no sentido de construir e transformar o humano em momentos singulares de sofrimento e fragmentação do ser, sendo destacada a ideia de ciência médica acolhedora, humanizante da relação médico-paciente e sustentáculo da integridade de quem sofre em sua dimensão existencial unívoca. Também enfatiza que a função paterna não deve ser ignorada na prática da medicina humanizada. Ainda ressalta a singularidade de cada trabalho terapêutico em detrimento de generalizações na assistência em saúde.

Na visão de Winnicott (apud ABRAM, 2000), pode-se mencionar que a teorização do desenvolvimento emocional ressalta o ambiente e sua influência sobre a saúde, sendo a mãe a primeira ambiência constitutiva para o ser humano. O ambiente pode subsidiar um espectro de experiências e ser considerado facilitador ou nocivo. O ambiente facilitador promove crescimento rumo à saúde, distintamente daquele que falha e leva à instabilidade e ao adoecimento. O conceito de verdadeiro self é importante na visão winnicottiana.

Apenas o verdadeiro self pode ser criativo, e apenas ele pode sentir-se real. Considerando-se que o verdadeiro self sente-se real, a existência de um falso self resulta em um sentimento de irrealidade ou de inutilidade (WINNICOTT apud ABRAM, 2000, p. 229).

Na perspectiva delineada neste escrito, tais noções winnicottianas podem ser caras à construção de um trabalho neuropsicanalítico.

Bocchi e Manzoni-de-Almeida (2013) falam de conceitos psicodinâmicos em modelos neurobiológicos acerca da mente e do cérebro. Referem-se também a recursos de neuroimagem sustentando aproximações entre conceitos freudianos e resultados empíricos. Com os autores, podem ser vislumbradas mudanças de funcionamento mental em casos de lesões cerebrais, tumores, acidentes vasculares, entre outros aspectos. É ressaltado, segundo Luria apud Bocchi e Manzoni-de-Almeida (2013), que a função mental não estaria localizada em uma parte específica do cérebro; tratar-se-ia de muitos elementos em interação funcional dinâmica.

Como se compreende, não se deve imaginar uma relação de identificação direta entre conceitos psicanalíticos e neurológicos, quando se pensa nas contribuições da psicanálise à neurologia ou na neuropsicanálise. Como psicanálise e neurologia são áreas bem distintas do conhecimento em seu terreno teórico-técnico, quaisquer interfaces precisam ser cuidadosamente desenhadas, o que não impede um reconhecimento da importância de tal articulação para as duas áreas e os pacientes com quadros neurológicos. Ressalte-se, por outro lado, que os benefícios da neuropsicanálise no campo da saúde não podem ser igualados aos da neuropsicologia, pois, além das diferenças epistemológicas, teóricas e práticas das duas áreas, os neuropsicólogos têm em seu labor a utilização costumeira dos instrumentos da psicometria, os testes psicológicos.

A posição que se delineia aqui, portanto, é a interlocução da psicanálise com a neurologia e as neurociências, e não o aprisionamento no conhecimento especializado e do narcisismo.

Considerando que a psicanálise pode ter um lugar hoje junto à medicina e, mais especificamente, à neurologia, qual seria ele?

Pensamos em várias posições possíveis aos psicanalistas nesse cenário, pois não existe o psicanalista soberano, mas psicanalistas singulares, únicos, e trabalhos psicanalíticos ímpares em consultórios e nos mais diversos contextos. A psicanálise preza a palavra, mas o brinquedo é linguagem, o gesto é linguagem, o silêncio, um olhar e uma pequena resposta motora podem ser escutados no campo linguístico e simbólico.

Nesse sentido, pode-se pensar no emergir do sujeito nas cenas médicas em áreas como a neurologia, nas UTIs e em outras paisagens. Os psicanalistas podem trabalhar com pacientes em coma, que estão saindo dessa situação, ajudá-los na reinserção no mundo simbólico e em seu desenvolvimento global. Existem casos de Parkinson, Alzheimer, lesões neurológicas, entre outros, que evidenciam a força do infantil e do inconsciente, que se estrutura como linguagem, linguagem essa que pode ser acompanhada em seus efeitos pelos psicanalistas através do contato com pacientes, seus investimentos libidinais no corpo, suas dinâmicas psíquicas com familiares e equipe de saúde.

Por outro lado, as aproximações da psicanálise com a medicina e, mais especificamente, com a neurologia, trariam um ponto de interrogação e exclamação basal: a sociedade de produção e consumo, ao favorecer o cientificismo, o tecnicismo, a dessubjetivação e a coisificação do humano não estaria ameaçando a sobrevivência do sujeito e da fecundidade psicanalítica, do ofício dos psicanalistas com a linguagem?!

Nesse sentido, o trabalho com a linguagem, que não se restringe ao pragmatismo cientificista, estaria entre a vida e a morte?

Paradoxalmente, a escuta e o ofício poético com a linguagem, na clínica psicanalítica, não poderiam salvar o sujeito, como a arte – a literatura, a música, a pintura, a escultura, entre outros exemplos – seria um escape da loucura, da alienação, um exercício de sublimação para as pulsões de vida-morte?

A filosofia e outras áreas afins também estariam remando contra a correnteza de um mundo que tem se desumanizado?

Como, então, sustentar a escuta psicanalítica, em construções contemporâneas, sem que haja um esvaziamento da dimensão simbólica – criativa e criadora – da linguagem, assim como da sensibilidade analítica tão expressiva quanto aquela do pai da psicanálise ao se colocar na posição de questionar a medicina e a neurologia de sua época? 

Trabalhar individualmente, ilhado, protegendo-se  do  contato  com  o  novo,  é  bem  distinto  do  ponto  de  vista do  caminhar  multiplicador   que  considera  as  inovações  socioculturais  e a construção  da  perspectiva  do  nós  desenhada  com  esperança. 



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