A Neuropsicologia é a soma dos conhecimentos da Neurologia com os conhecimentos da Psicologia, certo? Na verdade: errado ou no mínimo limitado! A Neuropsicologia é uma daquelas áreas de interface em que o todo é mais amplo que a soma das partes. Isso quer dizer que você pode entender "tudo" sobre Neurologia e sobre Psicologia e ainda assim não compreender como essas áreas se conectam, se influenciam e o quanto são inseparáveis na sua complexidade funcional.
Então, se você quer conhecer mais sobre as conexões dessa complexidade, para entender melhor como um ser humano funciona, acompanhe essas reflexões.
As extremidades atraem!
Vamos começar logo com um exemplo prático: como saber se uma senhora, com os seus 65 anos de idade, está com depressão ou princípio de demência? Esta é uma das dúvidas recorrentes em equipes interdisciplinares de cuidados em Saúde Mental pela semelhança das características. Este é um diferencial importante de ser compreendido porque as orientações de cuidado são distintas.
Muitas pessoas, como essa senhora, vão em busca de ajuda profissional com intenso sofrimento psicológico, apresentando limitações na funcionalidade da vida de forma que sua autonomia já se apresenta comprometida. O sofrimento se estende para suas relações familiares e até para questões econômicas. Percebem a complexidade? É um fato que uma situação como esta envolve questões emocionais e, por isso, já se justificaria realizar um consulta psicológica Mas como saber se as questões psicológicas são o resultado de uma dificuldade emocional, afetiva, relacional ou quando envolve questões estruturais da sua humanidade como alterações das funções do Sistema Nervoso Central.
O primeiro desafio para todos nós, profissionais, familiares e a própria pessoa em sofrimento, é não reduzir processos complexos a entendimentos simples. Quem nunca ouviu esta frase: "Ah isso é psicológico!” Pois é, nem tudo é apenas psicológico, assim como pode não ser apenas biológico ou relacional. Mas as extremidades atraem, não é? Até mesmo para refletir sobre o quanto as questões da vida podem ser complexas, estamos usando aspectos que podem reduzir nossa compreensão como: o que é causa, o que é efeito? O que é principal e o que é secundário.
Não me surpreenderia se você me dissesse que funciona assim inclusive para entender outros aspectos da vida. Não é difícil perceber o quanto é tentador encontrar uma resposta simples, já que logo depois viria uma sensação de alívio, de segurança e de aparente resolução. Pois é, mas, na verdade, a vida humana é mais complexa do que a lógica de causa e efeito, usada nas ciências naturais, pode explicar. A exemplo disso, a Neuropsicologia é uma área que expande as extremidades e os pensamentos duais, mas nem por isso torna-se incompreensível.
No caso da senhora, sobre a qual acabamos de levantar as possibilidades de depressão ou princípio de demência, diríamos que uma resposta simples poderia não ajudar. Mas uma compreensão ampliada que envolvesse seus aspectos psicológicos, neurológicos, imunológicos, endocrinológicos, sociais e espirituais, assim as correlações entre eles, traria a identificação do cuidado mais adequado para este momento da vida dela.
Observe que não estamos falando de resolução de todos os problemas de cada uma dessas áreas. Aliás, não estamos falando de resolução e nem de problemas, mas de compreensão integral de um ser humano e de consideração pela sua condição funcional total, para otimizar as potencialidades de que dispõe. Este é um dos principais objetivos da Neuropsicologia moderna.
O que a Neuropsicologia estuda?
Historicamente, a Neuropsicologia é uma área de estudo que tem o mesmo tempo de história da própria Psicologia. Estudiosos importantes como Broca (1824-1880), Wernicke (1848-1805) e Luria (1902-1977) destacaram-se nas descobertas das correlações entre funções cognitivas e regiões cerebrais. Foram muitas descobertas. Hoje temos mapas das atribuições de cada região cerebral e, com a tecnologia dos exames de imagem à disposição, é possível compreender diversos padrões de ativação de regiões correlatas em determinadas circunstâncias. Mas não nos enganemos! Descobrimos muito, mas ainda sabemos pouco sobre como o cérebro e os demais componentes do Sistema Nervoso funcionam.
Ainda lembro que, no início da minha graduação, ainda havia resquícios de que a maioria das células corporais poderiam se regenerar, mas que para os neurônios (células do Sistema Nervoso) não era da mesma forma. Anos mais tarde, descobrimos que essa era uma autêntica fake news. Novas pesquisas mostraram regeneração celular em neurônios. Abriu-se um campo fértil para os estudos da neuroplasticidade cerebral Ainda lembro da minha sensação de surpresa e de encantamento com as novas possibilidades.
Mais recentemente, em 2017, estive em um congresso internacional de neurociência (I World Congress on Brain, Behavior and Emotions) e pude acompanhar diversos neurocientistas mostrando resultados de estudos, inclusive longitudinais (aqueles que acompanham a evolução de um grupo de pessoas por anos), sobre o crescimento e multiplicação de grupos de neurônios responsáveis por funções como memória e atenção em idosos que praticavam atividades sistemáticas e regulares de reabilitação neuropsicológica. Não é fantástico.
Então podemos afirmar, sem receio, que a Neuropsicologia não estuda mais apenas os locais do Sistema Nervoso responsáveis por determinadas funções, o chamado localizacionismo. Mais recentemente, a Neuropsicologia recebeu influências do Holismo, da inter e a transdisciplinaridade. Atualmente algumas vertentes têm como objetivo compreender a complexidade das correlações entre as estruturas e suas funções, a forma como se apresentam e as condições neuropsicológicas das pessoas. Para facilitar sua compreensão vamos descrever didaticamente estes componentes:
Aspectos neuropsicológicos estruturais: Entendemos por estrutura o aparato orgânico que temos disponível: o nosso sistema nervoso, que é dividido em sistema nervoso central (encéfalo e medula espinhal) e sistema nervoso periférico (nervos cranianos e raquidianos). O encéfalo é o elemento central da estrutura e se subdivide em: cérebro, cerebelo e bulbo.
Aspectos neuropsicológicos funcionais: O sistema nervoso coordena o funcionamento orgânico do corpo, assim como as funções psicológicas básicas (sensação, atenção, percepção, memória) e as funções psicológicas complexas (linguagem, consciência, pensamento, emoção, sentimento).
Estes aspectos se correlacionam intermediados por processos químicos e físicos como a liberação de certos hormônios presentes na comunicação entre as células. Talvez o exemplo mais comum seja a sinapse, a comunicação entre os neurônios que compõem uma rede de uma média de 86 bilhões de unidades de diferentes tipos, morfologias e funções.
Toda esta estrutura na interação com as relações humanas e com o mundo formam ainda a personalidade humana, que também não é um conceito estático e está em constante transformação à medida que a pessoa vive novas experiências. Assim vão se formando e se transformado as características diversas e únicas das pessoas.
Hoje sabemos que as emoções, as experiências, as relações e as atividades da vida humana desencadeiam alterações físico-químicas na estrutura funcional neuropsicológica, modificando padrões de funcionamento. Assim como sabemos que alterações físico-químicas, desencadeadas por fatores orgânicos como comprometimentos adquiridos por um acidente, por exemplo, ou aqueles congênitos ou ainda genéticos, também transformam reações emocionais, percepções de si e do mundo, modificando o jeito de ser das pessoas.
Como a Neuropsicologia funciona na prática?
A Neuropsicologia é uma área das interfaces, interessada nas relações de complexidade e em uma compreensão de totalidade da vida humana. Tomando como base o processo de neuroplasticidade, temos uma visão do horizonte da prática da Neuropsicologia. Vamos explorar algumas possibilidades:
Avaliação Neuropsicológica: processo sistemático que envolve entrevistas iniciais com a pessoa, familiares e outros profissionais que a acompanham; escolha criteriosa e específica de instrumentos neuropsicológicos como testes psicológicos, escalas e inventários; construções de laudo neuropsicológico compreensivo; entrevistas de devolução para a pessoa e familiares. Um processo que visa a ampliação de compreensão da pessoa para a pessoa e para posterior encaminhamento e estruturação de acompanhamento se necessário.
Habilitação e Reabilitação neuropsicológica: processo geralmente posterior à avaliação que envolve a construção e realização de procedimentos sistemáticos e processuais de promoção do desenvolvimento neuropsicológico da pessoa. Um processo com periodicidade e objetivos definidos em conjunto e que leva em consideração as características globais e peculiares de cada pessoa.
A Neuropsicologia pode envolver a compreensão do desenvolvimento neuropsicológico, que inicia na gestação, estendendo-se até a compreensão do processo de envelhecimento, passando por todas as dificuldades, síndromes e alterações genéticas, congênitas e ambientais que interferem e caracterizam o processo neuropsicológico das pessoas.
A Neuropsicologia habilita e reabilita módulos cognitivos e psicológicos deficitários derivados de comprometimentos adquiridos ou resultantes do desenvolvimento do Sistema Nervoso. Além de realizar orientação a familiares, profissionais da educação e da saúde sobre formas de promover o desenvolvimento das pessoas.
O que toda esta compreensão nos ensina para a nossa vida é que:
Processos complexos precisam ser compreendidos com complexidade. Não há respostas simples para a compreensão humana. Ela é complexa por natureza, então nunca teremos uma compreensão total ou permanente ou um insight tão poderoso que explique o que de fato está acontecendo. Mas podemos estar sempre em busca ou na direção de uma compreensão mais complexa de nós mesmos.